Carlos Lacerda e o jornalismo de combate

O termo jornalismo de combate designa uma tradição jornalística que compreende a imprensa como instrumento de luta moral, política e intelectual. Mais do que noticiar, ela confronta. Mais do que relatar, interpreta e denuncia. O jornalista, nesse contexto, não é apenas mediador dos fatos, mas protagonista da cena pública, capaz de moldar o destino de uma nação pelo poder da palavra.

Essa concepção, defendida em estudos recentes sobre o papel do jornalista como agente ético e social, tem raízes profundas na história política brasileira. Entre seus maiores representantes, nenhum simboliza melhor esse espírito combativo do que Carlos Lacerda, o homem que transformou o jornal em tribuna e a notícia em ato político.

Carlos Lacerda e a construção do jornalista combatente

Nascido no Rio de Janeiro em 1914, Lacerda foi escritor, deputado, governador e, acima de tudo, um jornalista que acreditava na força moral da imprensa como guardiã da República. Sua trajetória foi marcada por uma ideia central: o jornalismo deveria ser uma missão cívica, uma forma de ação pública contra a corrupção e o autoritarismo.

Fundador do Tribuna da Imprensa, em 1949, Lacerda fez do jornal um campo de batalha política. Suas manchetes e editoriais inflamados representavam mais do que simples opinião: eram instrumentos de mobilização, escritos com convicção e senso de urgência.

Ao contrário do jornalismo técnico e neutro que começava a se consolidar no pós-guerra, seu estilo era opinativo, retórico e moralizador. Cada texto era uma convocação. Cada artigo, uma denúncia. Cada edição, uma trincheira.

Essa postura o colocou entre os grandes exemplos do jornalismo militante, não no sentido partidário, mas na acepção clássica de militância moral, onde o compromisso do jornalista é com a verdade e com a consciência pública.

A missão da imprensa segundo Lacerda

Em seu livro “A Missão da Imprensa”, publicado em 1965, Lacerda sistematiza o que havia praticado por décadas. O texto é, ao mesmo tempo, um tratado sobre o papel social do jornalismo e uma defesa apaixonada da liberdade de expressão.

Para ele, a imprensa não existe para servir aos governos, mas para fiscalizá-los. Não para agradar aos poderosos, mas para corrigi-los. Sua função essencial seria garantir o equilíbrio moral da sociedade, atuando como consciência crítica da nação.

Em um dos trechos mais conhecidos, Lacerda afirma:

“A imprensa é a voz da consciência pública. Quando se cala, a corrupção prospera. Quando mente, a liberdade morre.”

Essa concepção ecoa a noção contemporânea de watchdog journalism, o jornalismo cão de guarda das democracias. Lacerda antecipava o debate sobre a autonomia da imprensa como poder fiscalizador, independente dos interesses do Estado e do mercado.

Ele também via o jornalista como uma figura moral, quase sacerdotal:

“A imprensa é o altar do civismo. O jornalista, seu sacerdote.”

Em um país ainda marcado por coronelismos e regimes autoritários, essa visão era revolucionária. Para Lacerda, a imprensa só cumpria sua missão quando enfrentava o poder e, por isso, o jornalismo era, inevitavelmente, um ato de combate.

O estilo combativo e a retórica moral

Lacerda escrevia como quem fala a um auditório. Seu estilo era incisivo, direto e impregnado de ironia. Usava a palavra como arma política e acreditava que o jornalismo só teria valor se fosse capaz de incomodar.

Seus textos misturavam dados, citações e ataques pessoais, o que lhe rendeu fama de polêmico. Mas essa retórica fazia parte de uma estratégia: despertar o leitor, sacudi-lo da apatia. “O jornalista não é um cronista de acontecimentos”, dizia, “mas o intérprete das inquietações do seu tempo.”

Em sua atuação no Tribuna da Imprensa, Lacerda deu forma a um modelo de jornalismo que unia investigação, denúncia e opinião. Ele foi precursor do que décadas mais tarde seria chamado de jornalismo de impacto , aquele que pauta a agenda pública e provoca reações concretas.

O jornal, para ele, era um órgão de responsabilidade social. Nas páginas da Tribuna, denunciou corrupção, criticou presidentes e desafiou censores. O preço foi alto: perseguições, atentados e o fechamento temporário do jornal durante o governo Vargas.

Mas Lacerda não recuou. “Fechar um jornal é calar um povo”, escreveu. “E calar um povo é o primeiro passo para escravizá-lo.”

Jornalismo e política: duas faces da mesma missão

Lacerda compreendia o jornalismo e a política como esferas complementares. Para ele, o bom jornalista era um político sem mandato e o bom político, um jornalista com responsabilidade.

Essa visão, inspirada em pensadores como Max Weber, que via o jornalista como “um político sem mandato”, moldou a carreira de Lacerda. Seu ingresso na vida pública não foi uma ruptura, mas a extensão natural de sua atividade jornalística.

O Tribuna da Imprensa não apenas refletia o cenário político: intervinha nele. Ao denunciar irregularidades, o jornal influenciava votações, derrubava ministros e mobilizava a opinião pública.

Essa simbiose entre imprensa e política fez de Lacerda uma figura singular: jornalista, político e estrategista. Ele acreditava que a palavra pública era o maior instrumento de poder numa democracia. Poder que deveria estar a serviço da liberdade.

A imprensa como consciência nacional

Em A Missão da Imprensa, Lacerda defende que a liberdade de expressão é a base de todas as demais liberdades. Quando a imprensa é subjugada, toda a sociedade se torna refém da mentira institucionalizada.

Sua crítica não se limitava à censura política. Ele via com igual preocupação a censura econômica, exercida pelos anunciantes e pelos interesses empresariais. A imprensa, dizia ele, deveria sustentar-se pela credibilidade, e não pela dependência financeira.

“O jornal que se vende ao poder não é imprensa, é cartaz. E o jornalista que teme perder o emprego não merece o nome que carrega.”

Essas ideias antecipam discussões atuais sobre o conflito entre jornalismo e mercado, tema recorrente nas universidades e nos estudos sobre ética profissional.

Lacerda, portanto, não defendia apenas um jornalismo combativo ,mas um jornalismo livre e responsável, consciente de sua influência e de seu dever social.

O jornalista como agente histórico

Ao situar o jornalista como sujeito ativo da história, Lacerda aproximou o ofício da dimensão intelectual. O jornalista, em sua visão, deveria ser educador da consciência nacional, intérprete da moral pública e defensor dos valores cívicos.

Essa concepção o coloca em sintonia com a tradição francesa dos publicistas e com a figura do intelectual engajado, descrita por Jean-Paul Sartre. A diferença é que, para Lacerda, o engajamento não se dava em nome de ideologias, mas em nome da liberdade e da verdade.

Em seu tempo, isso o tornava uma figura polêmica e admirada em igual medida. Para uns, era o “demolidor de presidentes”; para outros, o último grande tribuno da palavra. Mas, para todos, era inegavelmente um jornalista de combate.

Legado e atualidade

Décadas após sua morte, o pensamento de Carlos Lacerda permanece atual. Em tempos de desinformação e polarização, sua defesa intransigente da liberdade de imprensa e da responsabilidade ética dos jornalistas ganha novo sentido.

O jornalismo de combate de hoje, mais plural e digital, encontra na obra de Lacerda uma referência moral: a ideia de que a palavra deve servir à verdade, e não ao poder.

Em um ambiente de redes sociais saturadas por opinião e desinformação, revisitar A Missão da Imprensa é reencontrar o princípio esquecido de que o jornalismo, antes de tudo, é serviço público.

O essencial em poucas linhas

Carlos Lacerda acreditava que o jornalista é o sentinela da liberdade. Seu jornalismo, intenso e moralmente comprometido, definiu um modelo de imprensa que não teme o conflito nem foge da responsabilidade de formar opinião.

Seu legado transcende o tempo porque lembra ao profissional da notícia que informar é um ato político, e combater é um dever ético.

O jornalismo de combate, tal como Lacerda o concebeu, é aquele que entende que a palavra é poder e que usá-la em defesa da verdade é a mais alta missão do ofício!

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